quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Cuidado com as coligações

Ao votar em pleitos proporcionais (aqueles para vereador, deputado estadual e deputado federal), cuidado com as coligações. Você pode estar dando seu voto para um candidato de um partido com o qual você se identifica e, sem que você seja consultado, seu voto pode ir para outro candidato, de um partido no qual você não confia!
Na atual legislatura federal, somente 27 deputados, entre 513, foram eleitos  diretamente pelo voto nominal. Sua votação representa apenas 7,9 %  dos votos válidos para a Câmara. Os demais se  beneficiaram, em maior ou menor proporção, de votos que eram  dirigidos a outros candidatos. E, no caso das coligações, esses votos podem ter vindo de outros partidos que não o deles.
Veja como.
O mandato é do deputado ou do partido?

 A aritmética da votação
Do ponto de vista puramente aritmético – como se compõe a soma dos  votos que elegeu um determinado deputado –, a resposta não pode ser  única e direta. Há diversas situações em que um deputado federal é  eleito, e em cada uma delas a relação de seu mandato com o partido é  diferente.

O deputado pode ter feito, individualmente, votos em quantidade  suficiente para alcançar o Quociente Eleitoral, que é o número de  votos válidos para a Câmara em sua Unidade da Federação, dividido  pelo número de cadeiras daquela Unidade na Câmara. Não precisamos  nos debruçar, aqui, sobre o fato bem conhecido de que o coeficiente  eleitoral, ao diferir muito de UF para UF, leva à Câmara deputados  com votações muito díspares. O que interessa é que há deputados que  “não precisaram dos votos do partido” para se eleger. Na atual  bancada federal de 513 deputados, 27 (5,3%) se elegeram nessas  condições. Esses talvez tenham um bom argumento para afirmar que o  mandato é seu, e não do partido.

Uma situação diferente é a daqueles deputados que não alcançaram o  coeficiente eleitoral. Para chegar à Câmara, alguns deles dependeram  do Quociente Partidário, que é o que define o número inicial de  vagas que caberá a cada partido ou coligação que tenham alcançado o  quociente eleitoral. Esse quociente é determinado dividindo-se o  número de votos válidos dados ao partido ou à coligação pelo  quociente eleitoral, desprezando-se a fração. Nesse caso, a votação  individual do candidato servirá para definir o seu lugar na lista  dos que dependem dos votos depositados diretamente na legenda  partidária e da soma dos votos dos candidatos do partido.

Tudo isso, mais uma vez, contabilizado no nível de cada Unidade da  Federação. Os mais votados dentre os que não alcançaram o  coeficiente eleitoral entram nessas vagas definidas pelo total de  votos no partido. Para esse grupo, pareceria mais justo reconhecer  que sim, foi graças ao partido que eles conquistaram o mandato.  Entre os 513 deputados da atual legislatura, 408 (79,5%) obtiveram o  mandato dessa forma, com um total de 40,1% dos votos válidos para  deputado federal.

Há em seguida uma terceira situação. São aqueles deputados que se  elegem com base em uma conta de ajuste que é feita somando-se as  frações que sobraram após a divisão das cadeiras entre todos os  partidos. Na prática, isso significa que a conta do número de vagas  que cabe a cada partido não costuma ser exata: um partido elege, por  exemplo, 3,4 deputados, outro elege 5,2 e assim por diante. Também  os partidos que não atingiram o quociente eleitoral e, portanto, não  elegeram nenhum deputado, têm os seus votos incluídos nesse bolo da  redivisão, embora não recebam nenhuma de suas migalhas. Todas essas  “sobras” ou frações, reunidas, compõem mais alguma(s) cadeira(s)  inteira(s), cuja divisão é feita entre os partidos.

É a chamada Média, cujo cálculo é meio complicado, mas que  basicamente é obtida “dividindo-se o número de votos válidos  atribuídos a cada partido pelo número de lugares por ele obtido,  mais um, cabendo ao partido que apresentar a maior média um dos  lugares a preencher”. O deputado que se elegeu dessa forma deve,  portanto, seu mandato tanto ao seu próprio partido quanto ao(s)  partido(s) que contribuíram com as frações necessárias para compor a  vaga que ele veio a ocupar. Foram eleitos pela média, sem a  participação em coligações, 13 integrantes (2,5%) da atual Câmara  dos Deputados, com 0,9% dos votos válidos para deputado federal.

Uma situação ainda mais complexa é a dos deputados que se elegeram  pela média não por um partido, mas por uma coligação. Pode ocorrer  que a cadeira extra conquistada pela coligação seja devida em grande  parte à votação recebida pelo partido “A”, dentre todos os que  compõem a coligação. Entretanto, a vaga pode ir para um candidato do  partido “B” ou “C”, se esse for o que tem a maior votação individual  entre os candidatos ainda não eleitos. Neste caso, a quem ele deve  seu mandato? A dúvida assalta, nesta legislatura, 65 (12,7%)  deputados, que obtiveram 3,9% dos votos válidos para a Câmara.


O mandato é do eleitor
Essa parece ser uma resposta politicamente mais correta à nossa  pergunta-título. Foi do eleitor que o deputado ou o partido recebeu  o mandato; é natural, portanto, que a vontade do eleitor seja o  critério mais importante a ser respeitado quando se trata de decidir  o que fazer com essa “carta-branca” assim concedida, com validade de  quatro anos. Mas será possível determinar a quem o eleitor conferiu  o mandato – se ao candidato ou ao partido?

Há uma parcela do eleitorado que vota diretamente na legenda  partidária, sem indicar nenhum candidato. Nas últimas eleições para  deputado federal, foram 9.851.056 votos desse tipo (9,7 % dos votos  válidos para a Câmara dos Deputados). Esses, claramente, votaram no  partido.

Já ao eleitor que vota nominalmente, pode ser atribuída a intenção  de conferir o mandato ao candidato. Nas eleições de 2006, 90,3% do  total de votos válidos para deputado federal foram nominais. Mas se  considerarmos apenas o total de votos nominais em candidatos  eleitos, teremos um percentual muito pequeno de eleitores que podem  se orgulhar de ter escolhido um deputado: apenas 37,4 % do  eleitorado apto a votar. Os demais, se votaram nominalmente em um  candidato, tiverem na prática seus votos desviados para outro, não  necessariamente do mesmo partido.

Esse “déficit de representação” reforça o dado que já havíamos  destacado antes: somente 27 deputados, entre 513, foram eleitos  diretamente pelo voto nominal. Sua votação representa apenas 7,9 %  dos votos válidos para a Câmara. Os demais deputados se  beneficiaram, em maior ou menor proporção, de votos que eram  dirigidos a outros candidatos.

Uma triste constatação, portanto, impõe-se: a Câmara dos Deputados é  pouco representativa do eleitorado brasileiro. Nacionalmente,  somando-se os deputados eleitos, os eleitos pela média e os votos de  legenda, estão representados menos de 50% dos aptos a votar. Há  casos extremos, como o do Rio de Janeiro, onde apenas  aproximadamente 35% dos votos válidos (somados nominais e de  legenda) estão representados na Câmara.

A “vontade do eleitor”, num tal sistema, é escassamente respeitada  desde a origem, e dificilmente poderá ser invocada como critério  para associar ou dissociar o mandato do deputado ao partido pelo  qual ele se elegeu.


Impasse: o mandato não tem dono?
Um caminho alternativo para tentar uma resposta seria o de tentar  verificar na prática - para além do partido ou do eleitor individual  - que fator ou fatores influem decisivamente na eleição de um  deputado.

Uma sumária e não exaustiva lista de tais fatores apontaria pelo menos o apoio de:

·         uma forte base municipal ou regional (prefeitos, vereadores, deputados estaduais)

·         um ou mais segmentos empresariais (setor financeiro,indústria automobilística, farmacêutica, etc)

·         um ou mais setores agropecuários (arrozeiros, pecuaristas, canavieiros, etc)

·         a tradição familiar (pai, avô, irmãos, marido/esposa já consagrados na política)

·         uma ou mais categorias profissionais (professores, militares, médicos, metalúrgicos,etc)

·         um ou mais movimentos sociais (ONGs, mulheres, negros, sem-terra, etc)

·         - um ou mais grupo religiosos/confessionais (Igreja Católica, evangélicos, umbandistas, etc)

·         - participação na imprensa, clube esportivo, e outras janelas de visibilidade.

Esses apoios ou bases podem também se compor entre si, em diferentes  proporções, aumentando as chances do candidato. O Departamento  Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e o site Congresso em  Foco realizaram diversos levantamentos sobre a composição da atual  legislatura, reunidos na publicação O que esperar do novo Congresso,  da qual extraímos os dados a seguir, relativos à Câmara dos  Deputados:

·         263 deputados são profissionais liberais e trabalhadores de nível superior e representam 51% da Casa

·         a bancada empresarial desta legislatura é a mais significativa desde a Constituinte: empresários urbanos e rurais são 182 (35,5% do total de deputados federais)

·         operários e outros trabalhadores são apenas 18 (4%)

·         trabalhadores especializados são 17 (3%);

·         apresentadores de rádio e TV, artistas e radialistas são 13 (3%);

·         pastores e bispos evangélicos são 7 (1,25%);

·         policiais são 6 (1%).

Dos 244 novos deputados desta legislatura, pelo menos 200 já  exerceram mandato ou cargo político em algumas das três esferas de  governo (federal, estadual ou municipal) ou em algum dos poderes  Legislativo e Executivo.

Os efetivamente novos, os chamados “supercalouros” (deputados de  primeiro mandato que não exerceram antes qualquer cargo eletivo)  estão restritos a três categorias: os comunicadores (apresentadores  de TV, radialistas, artistas e cantadores), os bispos e pastores  evangélicos e finalmente os parentes de políticos tradicionais.

A bancada dos parentes, reunindo parlamentares reeleitos e novos que  tenham parentesco com políticos brasileiros tradicionais, representa  20% dos parlamentares da atual legislatura (Câmara e Senado). Entre  os supercalouros esse percentual chega a 34%.

Além desses fatores capazes de turbinar uma eleição – e geralmente  associado a eles –, o poder econômico exerce uma influência  considerável na definição de quem será ou não vitorioso na disputa  pelo mandato. O jornal Correio Braziliense publicou, em dezembro de  2006, minucioso levantamento do financiamento das campanhas  políticas pelos 200 maiores doadores. Somente o grupo Gerdau, o  segundo maior em doações, ajudou a eleger 27 deputados.

Responsáveis por um terço do custo total das campanhas, os grandes  doadores investiram R$ 500 milhões em candidatos de vários partidos  e do país inteiro, atendendo, contudo, a “uma característica  básica”: “beneficiam políticos poderosos, seja no Congresso, governo  federal ou estaduais”. Não por coincidência, como mostra novamente o  Correio Braziliense em fevereiro de 2007, deputados que receberam  volumosas doações de grandes empresas ocupam postos nas principais  Comissões temáticas da Câmara, onde questões do interesse desses  grandes doadores são encaminhadas e decididas.

Diante de tais constatações, a pergunta inicial, se o mandato  pertence ao deputado, ao partido ou ao eleitor, nos soa simplista e  até ingênua. Há uma rede complexa de compromissos, lealdades e  ambições que passa ao largo, em grande medida, desses atores do jogo  político.

Portanto, seria extremamente simplista reservar a todos os deputados  que mudam de partido epítetos como “traidores do mandato popular” ou  “oportunistas que renegam seus compromissos partidários”. Os  próprios partidos, no nosso presidencialismo de coalizão, realinham  seus programas e suas estratégias em função do maior ou menor  quinhão de participação que conseguem obter nas vantagens do poder  executivo. Nesta legislatura, diga-se de passagem, foi o governo o  principal beneficiário da rotatividade partidária, que aumentou a  base aliada na Câmara em pelo menos 24 deputados.

 Enquanto não for concretizada uma cabal reforma política e  eleitoral, que inclua soluções alternativas aos atuais modelos de  relação entre o Executivo e o Legislativo e aos mecanismos de  financiamento e de distribuição dos mandatos, a representatividade  do Congresso e os compromissos programáticos dos partidos  continuarão em grande medida pura ficção. Ficção que o eleitor, a  seu modo e talvez confusamente percebe, e que o leva muitas vezes  seja a se desinteressar pela escolha de um representante, seja a  trocar seu voto por alguma vantagem concreta imediata.

¹João Luiz Pereira Marciano é doutor em Ciência da Informação e analista legislativo da Câmara dos Deputados.

² Rejane Maria de Freitas Xavier é jornalista, doutora em Filosofia e analista legislativa da Câmara dos Deputados.



ATUALIZADA EM:10/10/2007

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