sexta-feira, 18 de março de 2011

Gordura é doença?

Até que ponto o gordo é simplesmente diferente, e até que ponto deve ser considerado doente?
"O General Toscano Alessandro del Borro",
atribuído a Andrea Sacchi, 1645

A história da humanidade e da medicina é pontuada por diferentes construções teóricas dos conceitos de saúde e de doença, frequentemente associados a indicadores valorativos – o normal e o patológico, o bem e o mal, o certo e o errado.

Efeito de um mau-olhado, feitiçaria ou castigo divino; desequilíbrio dos humores internos e externos; “entidade mórbida” que acomete o indivíduo, miasmas insalubres ou germes específicos que atacam os órgãos; diferenças de grau nos processos fisiológicos; produto de hábitos condenáveis, de condições sociais estressantes ou de fatores psicológicos individuais... Causas simples ou etiologia multicausal, a doença resultante é quase sempre associada à culpa: do feitiço, dos deuses, do pecado, do meio ambiente, do indivíduo, da sociedade.

Essas diferentes formas de encarar a saúde e a doença se refletem na forma de tratamento que se considera adequada. Do isolamento da vítima ao reconhecimento de um direito difuso (a saúde como “direito de todos e dever do Estado”), passando pelos rituais midiáticos de cura coletiva ou pelos caros consultórios psi, todas as combinações possíveis parecem ter sido testadas.

E apesar de tudo, questões básicas persistem. Homossexualismo é doença? Obesidade é doença?


No primeiro caso, trata-se simplesmente de reconher e de aceitar uma diferença, defendem os interessados e as mentes mais lúcidas. No segundo, a controvérsia persiste. Até que ponto o gordo é simplesmente diferente, e até que ponto deve ser considerado doente
Estas reflexões, que aqui  permanecerão inconclusas, foram despertadas pelo corajoso artigo do dr. Alfredo Halpern, na Folha de São Paulo de hoje.

Especialista no tratamento da obesidade, ele se insurge contra a iniciativa da Anvisa, de retirar do mercado diversos remédios que atuam diminuindo o apetite.  Para ele, há uma “incoerência entre prestigiar os remédios contra as consequências (hipertensão e diabetes melito) e condenar os remédios que combatem as causas”. Incoerência que se deve, a seu ver, basicamente “ao preconceito contra os obesos, contra os remédios que podem tratá-los e contra os médicos que os tratam”.

Halpern é taxativo: “para a maioria das pessoas, inclusive as que participam das agências reguladoras, a obesidade não é doença, é quadro psiquiátrico, não precisa de medicamentos e o problema é resolvido simplesmente com dieta e atividade física. Pura falácia!”

Doença, sim! Continua o doutor. “Doença nas causas, pois é muito mais que falta de força de vontade, desleixo, falta de autoestima, etc., e sim resultado de vários fatores, desde alterações químicas no cérebro a defeitos no metabolismo energético, além de ser também causa de outras doenças” – o excesso de peso é o grande fator para hipertensão arterial e diabetes melito. “Mais de 80% dos hipertensos e mais de 90% dos indivíduos com diabetes do tipo 2, aquele que em geral aparece na idade adulta, e que como regra não necessita de insulina, têm excesso de peso”, explica o médico.

Como toda política pública, a abolição ou não dos remédios inibidores do apetite também deve ser decidida depois de muito diálogo, em que todas as vozes precisam ser ouvidas. O depoimento que a Folha publica hoje certamente é uma delas, e das mais ponderáveis. (RX)
(Mais sobre ética e saúde pública, aqui.)

2 comentários:

Cinthia Kriemler disse...

Meu comentário virou um tratado kkkk. Preferi lhe mandar como e-mail.

Rex Cogitans disse...

Complementando: o médico que escreveu na Folha não está "medicalizando" ou discriminando os gordos: está (ou pensa estar) defendendo o direito deles a ter reconhecida sua condição como merecedora de tratamento, por parte das políticas de saúde. Existem os que querem e precisam desse tratamento, e o que a Anvisa está fazendo, ao retirar do mercado (o que significa que nem os médicos podem prescrever) os moderadores de apetite é lhes negar esse "direito difuso". (Por interesses ou direitos difusos são entendidos "os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato", o que significa, entre outras coisas, que sua defesa pode ser exercida coletivamente em juízo.)Acho bacana que a sociedade esteja discutindo e se preocupando com isso!