A Câmara dos Deputados e os desafios da representação política no Brasil
Trabalho apresentado em Lisboa, no Colóquio Internacional
Cidadania na Sociedade do Conhecimento (CFCUL)
3 de dezembro de 2013
As relações entre os conceitos de democracia, participação, representação e cidadania são intrincadas, e comportam pelo menos duas vertentes básicas. Uma vez afastada, até por motivos práticos, a possibilidade de uma democracia direta à moda ateniense, restam as alternativas da democracia representativa e da democracia participativa, com as diversas combinações que elas admitem na prática. Há quem defenda tanto a máxima extensão da participação dos cidadãos nos assuntos políticos, como também os que consideram que um excesso de tal participação pode resultar num agravamento dos conflitos sociais, sem trazer contribuições capazes de resolvê-los ou pelo menos mitigá-los.[1]
No caso brasileiro, que nos interessa no momento, há, já no ponto de partida, uma clara opção pela democracia participativa e pela cidadania ativa. Tais conceitos estão inscritos como valores no discurso de todos os partidos e na própria Constituição Brasileira, embora seu exercício deixe muito a desejar na prática. Seja como for, colocam-se para a elite política os desafios correlatos do exercício da representação dos interesses múltiplos e complexos de uma sociedade que tem a participação como valor porém ainda engatinha na sua efetiva concretização.
Duas ordens de dificuldade afetam particularmente a representação do cidadão individual[2] pelos deputados eleitos para o legislativo federal, especialmente no caso da Câmara dos Deputados. A primeira, de ordem territorial, demo-geográfica: as imensas distâncias e a grande população de um país continente afetam diretamente a proximidade dos 513 deputados federais brasileiros com seus eleitores nos estados de origem. A segunda grande dificuldade é de ordem institucional: o próprio sistema eleitoral dificulta ao eleitor o acesso e até mesmo a identificação de seu representante na Câmara Federal.
1. A distância geo-demográfica
Para que se tenha uma noção concreta da relevância deste fator para o tema da representação, uma comparação com a situação portuguesa pode ser esclarecedora. Portugal, com uma população de algo mais de 10 milhões de habitantes e um território de cerca de 92 mil km², conta com 230 deputados na Assembleia da República.Por sua população, Portugal é comparável ao estado brasileiro do Rio Grande do Sul (RGS), com seus 10.milhões e 200 mil habitantes. As diferenças, no entanto rapidamente se fazem sentir: o território do estado é significativamente maior que o de Portugal, mas a sua cota de deputados federais é de apenas 31 (trinta e um)!
Se em Portugal cada deputado representa em média 47 mil eleitores, um deputado gaúcho deve representar 330 mil, espalhados por um território três vezes maior. Das grandes cidades portuguesas, a que está mais longe da capital é o Porto:320 km[3]. A cidade mais afastada da capital do estado do RGS, Barra do Quaraí, fica a 717 km de Porto Alegre. E Porto Alegre, por sua vez, está a 2119 km de Brasília, capital federal e sede da Câmara dos Deputados.
Ver animação no Prezi:
http://prezi.com/yibg1riexr_a/brazil-portugal/
Brasil (verde) RS (amarelo) Portugal (vermelho) |
Distâncias de algumas cidades a Lisboa
Lisboa -Porto-- 318kmLisboa-Lagos-- 303km
Lisboa- Faro-- 279km
Lisboa-Coimbra--208km
Lisboa- Évora – 134 km
Distância de algumas capitais estaduais a Brasília
Boa Vista 4275Belo Horizonte 741
Fortaleza 2190
Manaus 3490
Porto Alegre 2119
Rio Branco 3123
Rio de Janeiro 1169
São Luís 2019
São Paulo 1029
Tais comparações permitirão, espero, tornar sensível a grande dificuldade de comunicação direta entre os representantes e seus representados num país com a dimensão e a população do Brasil.
2. Obstáculo institucional: o sistema eleitoral
Neste item, pretendo mostrar como o sistema eleitoral brasileiro torna difícil, ou praticamente impossível, ao eleitor “ter um representante para chamar de seu” – isto é, o sistema eleitoral impede uma identificação direta eleitor/representante[4].Deputados federais são eleitos, no Brasil, pelo voto proporcional. A circunscrição eleitoral é o estado inteiro. Não há listas partidárias ordenadas: O partido inscreve seus candidatos, e o eleitor pode escolher um candidato de qualquer partido, votar na legenda partidária sem escolher um nome, votar em branco ou anular seu voto. Embora obrigatório o comparecimento eleitoral, o índice de abstenção costuma ser expressivo, entre 18 e 20%. Dividindo-se os votos válidos (não brancos ou nulos) pelo número de cadeiras atribuído ao estado, obtém-se o quociente eleitoral, que é o número de votos necessário para eleger um deputado naquele estado.
Dados das últimas eleições para deputado federal (2010)[5] mostram que:
a) O índice nacional médio de abstenção foi de 18,1%;
b) Para a Câmara, 6,8% dos votos foram brancos e 6,4% nulos;
c) Somente 35 candidatos (6,8% do total) conseguiram atingir o Quociente Eleitoral, ou seja foram eleitos apenas com votos recebidos por eles mesmos;
d) Do total de votos computados, apenas 19,9% (aprox. 20%) foram nominais e destinados a candidatos eleitos. Os 80,1% restantes foram votos de legenda, diluindo-se para conformar os coeficientes, ou foram dados nominalmente a candidatos que não conseguiram se eleger. Isto é, a cada cinco votos válidos, quatro não foram para candidatos eleitos.
Alguns exemplos evidenciam certas distorções típicas desse sistema eleitoral. No Rio Grande do Sul a candidata Luciana Genro, do PSOL (partido novo, de esquerda, oriundo do PT), teve praticamente 130 mil votos e não se elegeu. Já o PDT (Partido Democrático Trabalhista), no mesmo pleito, elegeu no estado um deputado com menos de 30 mil votos.
Nacionalmente, as coligações continuam a produzir resultados estranhos. Em São Paulo: na coligação que reuniu PT, PR, PCdoB, PTdoB e PRB, o palhaço Tiririca (com o lema “Vote em Tiririca, pior do que tá não fica”[6]) elegeu mais três deputados e meio com sua votação de 1,3 milhão de votos. Tiririca ajudou a eleger candidatos de três partidos diferentes: Otoniel Lima (PRB), Vanderlei Siraque (PT) e Protógenes Queiroz (PCdoB). Lima teve 95,9 mil votos , Queiroz 94,9 mil e Siraque 93,3 mil - número menor do que o de outros 10 candidatos, todos eles do PSDB ou DEM.
Critica-se frequentementte, na imprensa, o eleitor brasileiro por sua “falta de memória”, pois ao ser inquirido, algum tempo depois das eleições sobre o deputado em quem votou, a maioria declara que não se lembra. Na verdade, essa suposta falta de memória .é uma falta de representação. A grande maioria dos eleitores ou não votou para deputado federal (abstenções + votos em branco + votos nulos = 31,3 %), ou não escolheu um candidato (votou na legenda partidária) ou votou em algum candidato que não se elegeu, como vimos acima, em (d).
O fato não é, portanto, que o eleitor não lembra quem é o seu deputado, mas sim que ele não sabe quem é esse seu representante, ou simplesmente não tem um representante que possa chamar de seu.
3. A Câmara dos Deputados e sua função de representação
A Constituição Brasileira estabelece, em seu Art.45, que “a Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos pelo sistema proporcional”. E também dispõe, no seu Art 1°, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,nos termos desta Constituição”.Assim, fora os casos relativamente raros (plebiscitos, referendos) em que o povo é chamado a exercer diretamente seu poder em questões normativas, cabe aos representantes eleitos decidir em nome de todos.
A Câmara dos Deputados, cada vez mais, tem buscado formas de corresponder a esse mandato, contornando as dificuldades que acabam de ser apontadas (entre outras, como o baixo nível de informação da população sobre as funções do Legislativo, a sistemática desvalorização do trabalho parlamentar por parte da imprensa, a alta complexidade de muitas das questões a decidir, o imenso predomínio da agenda do Executivo, etc)..
Essa busca por uma melhor representação se dá em pelo menos três dimensões: a da transparência, a da auscultação e a da interatividade.
A Câmara tem desenvolvido instrumentos nessas três dimensões: abrir-se, ouvir e interagir com os cidadãos. Disponibilização de todo o tipo de informação em formato aberto; diversos canais para acolher a população e suas manifestações (individual ou coletivamente, física ou virtualmente) e variadas formas de participação no processo legislativo são apontadas.
No portal da Câmara dos Deputados na internet pode ser encontrada uma breve descrição de alguns dos principais instrumentos e canais abertos à participação popular, participação essa, na grande maioria dos casos, mediada pelas tecnologias digitais.
4. A pesquisa sobre ”A Câmara que queremos em 2023
O planejamento estratégico da Câmara dos Deputados para a próxima década (2012-2023) vem sendo realizado com o uso de modernas técnicas de pesquisa, e com a preocupação de atender simultaneamente as definições constitucionais sobre a instituição e as expectativas e aspirações de todos aqueles envolvidos ou afetados por sua atuação.Ouvir as demandas: a pesquisa de 2011
Em 2023 o Parlamento brasileiro completa 200 anos, e a ocasião foi considerada simbólica como marco de um ciclo longo de planejamento estratégico da Câmara dos Deputados. Como preparação para a definição das diretrizes estratégicas e respectivas linhas de atuação desse ciclo decenal, foi realizada uma ampla pesquisa envolvendo os principais setores interessados no funcionamento da instituiçãoA partir de uma elaboração teórica sobre os desafios da gestão e as funções de um parlamento moderno, que também levou em conta experiências de planejamento e gestão nos setores público e privado, os resultados do ciclo anterior do planejamento estratégico da Câmara (orientado pela metodologia BSC – Balanced ScoreCard) e entrevistas com as áreas técnicas e legislativa, foi desenhado o questionário de uma pesquisa sobre as projeções feitas por aqueles segmentos a respeito das características desejáveis da Casa a serem atingidas nos próximos 10 anos.. Ao ser testado com alguns respondentes internos e externos, o questionário sofreu ainda modificações e acréscimos.
Os respondentes foram 44 deputados, 29 especialistas (cientistas políticos, economistas, jornalistas), 360 servidores da Câmara dos Deputados e 575 cidadãos (via internet). A enquete ficou disponível na internet por um pouco menos de um mês, e o fato de que quase 600 cidadãos tenham se proposto a responder ao questionário de 60 perguntas revela um interesse bastante expressivo pela participação.
Não se trata, como é obvio, de uma amostra representativa da sociedade brasileira. Mas apresenta um recorte significativo de uma parcela da população que tem maior interesse pela política ou contato com a instituição.
A pesquisa confirma a demanda social e política por maior participação dos cidadãos e, conversamente, por uma melhor representação por parte dos eleitos. E evidencia que as tecnologias da informação e a modernização tecnológica do parlamento são vistos como caminhos privilegiados de interatividade entre representados e representantes.
As características desse levantamento, sua metodologia e resultados principais são sintetizadas a seguir (http://www2.camara.leg.br/a-camara/conheca/gestao-na-camara-dos-deputados/novo-ciclo-de-gestao-estrategica-2012-23/pesquisa-para-o-planejamento-do-novo-ciclo):
Finalidade da pesquisa
Coletar subsídios para o Planejamento Estratégico do Ciclo de Longo Prazo 2012-2023 da Câmara dos Deputados, quando o Parlamento completará 200 anos.Período
27/10/2011 a 18/11/2011
Público
Cidadãos, Deputados, Servidores e Especialistas (cientistas políticos e jornalistas)
Estrutura
Questionário on line
8 blocos de questões sobre os seguintes temas:
Participação social;
Discussão dos grandes temas nacionais;
Qualidade das leis;
Atuação parlamentar;
Representação;
Relacionamento Institucional;
Fiscalização;
Apoio à Atividade Parlamentar.
50 questões objetivas e 8 campos para comentários e sugestões em cada bloco.
Alternativas nas questões objetivas: nada importante <=> muito importante
Pergunta final aberta para os públicos de deputados e especialistas: "Como você acha que a Câmara dos Deputados deve ser em 2023".
Entrevistas Presenciais:
Gravação em vídeo de depoimentos de 25 deputados pela TV Câmara.
Resultados
Número de questionários respondidos:Total: 1.008
Cidadãos: 575
Deputados: 44
Servidores: 360
Especialistas: 29
Os resultados revelam uma clara compreensão, por parte destes participantes, sobre os papéis institucionais da Câmara: representar, isto é “ouvir o cidadão e interagir com ele”; legislar e fiscalizar, de forma transparente, eficiente, efetiva e eficaz.
Espera-se que a Câmara seja transparente (disponibilizando as informações de forma aberta), acessível (facilitando o acesso e a compreensão do cidadão) e interativa (permitindo que o cidadão, além de se informar, possa também se manifestar e ser ouvido).
A interação que denominamos qualificada com o cidadão é vista como função de um processo de educação política que leve a uma maior compreensão do papel do Legislativo e da atuação dos deputados.
Temas com maior número de respostas "importante" e "muito importante":
Transparência, informaçãoAcesso, interação com a Câmara
Educação política, compreensão do papel do parlamento
Controle efetivo, fiscalização
Modernização da legislação e do processo legislativo
Temas que surgiram nas respostas abertas:
Ética, honestidade, trabalho são valores que a população gostaria de encontrar na instituição e nos seus representantes.Ocorreram várias menções a corrupção, ficha limpa, voto aberto e representação.
Há desconhecimento, por parte da população, das múltiplas dimensões do trabalho parlamentar: Entende-se “trabalho” como presença no espaço físico da Câmara em Brasília, especialmente no Plenário.
Temas considerados de menor importância:
Estrutura da CasaCooperação técnica e interação com outros parlamentos
Diplomacia parlamentar
Trabalho fora da Câmara, nos estados
Proposição coletiva de leis em detrimento da iniciativa individual
Apoio à atuação das lideranças e dos partidos
Respondendo às demandas: Consequências da pesquisa
Na definição das diretrizes estratégicas 2012-2023 da Câmara dos Deputados, os resultados da pesquisa foram diretamente contemplados. Formuladas pela Assessoria de Projetos e Gestão (Aproge) da Diretoria-Geral da Câmara, as Diretrizes e respectivas linhas de atuação foram debatidas em workshop realizado com toda a alta administração da Casa, e posteriormente com cada uma das diretorias. Com base nessas discussões, uma formulação definitiva foi obtida, a qual foi aprovada em dezembro de 2012 pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados (http://www2.camara.leg.br/legin/int/atomes/2013/atodamesa-59-8-janeiro-2013-775042-publicacaooriginal-138699-cd.html)Observando-se a tabela anexa, com as Diretrizes e Linhas de Atuação Estratégicas aprovadas, percebe-se claramente a sua vinculação com os resultados da pesquisa, acima resumidos.
As Diretrizes Estratégicas e Linhas de Atuação da instituição para o período 2012-2023, recentemente aprovadas pela Mesa Diretora, representam portanto um compromisso com as aspirações e valores expressos pelo significativo grupo de cidadãos que participou na ampla pesquisa realizada pela Casa em 2011, para embasar seu planejamento estratégico.
Em síntese, podemos concluir que maugrado as grandes dificuldades que afetam o processo de representação política no Brasil, a Câmara dos Deputados tem obtido avanços no que concerne à abertura de canais que estimulem e permitam a maior participação dos cidadãos no processo legislativo.
3 de dezembro de 2012.
Rejane Xavier
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[1] Ver o excelente livro Simões, Maria J. Política e Tecnologia, Oeiras, Celta, 2005.
[2] A questão da representação individual se impõe desde logo, face à escassa prática do associativismo na cultura política brasileira. (ver por exemplo Ferreira, M.C. -Associativismo e contato político nas regiões metropolitanas do Brasil: 1988-1996. Revisitando o problema da participação, em http://en.scientificcommons.org/1446217 (acessado em 2012-12-01
[3] Açores, um arquipélago que foi descoberto por Portugal em 1427 e é formado por 9 ilhas, está aproximadamente na mesma latitude que Lisboa, a cerca de 1.430Km da costa portuguesa, distância percorrida em 2 horas de vôo. Politicamente, o arquipélago constitui uma Região Autónoma dotada de governo próprio e de uma ampla autonomia legislativa. A Assembleia Legislativa é um parlamento unicameral composto por 52 deputados eleitos por sufrágio universal e direto cada quatro anos. (http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20060925200319AA6zlqR) e http://pt.wikipedia.org/wiki/A%C3%A7ores#Divis.C3.A3o_administrativa)
[5] MARCIANO, J. L.; XAVIER, R. F. A Câmara que surge das eleições: uma análise comparativa entre os pleitos de 2002, 2006 e 2010. In: I Jornada de Pesquisa e Extensão. Brasília - DF: Cefor - Câmara dos Deputados, 2010.
[6] Veja-se, a bem da verdade: "Tiririca tem sido um bom deputado”: (http://www.ocontroledamente.com/2012/09/tiririca-meus-eleitores-nao-deram-votos.html)
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