Aí vai, quase sem retoques, meu ensaio de "crítica teatral", como saiu na ocasião.
DA VIDA PARA A HISTÓRIA (E VICE-VERSA)
"A vontade como princípio da ação": este lema de Aderbal Freire-Filho, diretor do Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, poderia também descrever a trajetória e a luta do personagem central da peça que, nas noites de segundas, terças e quartas-feira, reanima o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro: Getúlio Vargas, o tiro que mudou a história.
O espetáculo celebra - num sentido quase religioso - a paixão e morte da grande figura paterna do Brasil moderno: Getúlio, "o pai dos pobres", o pai da nação industrializada partejada pela Revolução de 30, a partir das contradições de uma sociedade que já não cabia no velho figurino político e econômico imposto pelas elites agrárias regionais, e que a vontade férrea do caudilho arrastou para o século XX.
Via-sacra
O cenário da peça é o mesmo - os móveis, os quadros, os lustres, as estátuas de bronze, tudo meio pesado, meio barroco para o gosto atual - onde se desenrolou a ação. Os personagens se deslocam através dos salões, das escadas, dos quartos do Palácio, e o público os acompanha. Mistura de via-sacra com coro de tragédia clássica, vamos sentindo a transformação, de testemunhas a participantes do drama. São 70 espectadores em cada sessão, de início um irriquieto e heterogêneo grupo de estranhos - jovens de tênis, grupos de senhoras, casais de turistas, um japonês, algumas crianças, um senhor idoso de bengala, apoiado por duas pessoas ao caminhar - depois cada vez mais sérios, atentos e emocionados. É o drama de Getúlio, mas é o nosso drama, o destino do nosso país, o momento em que muitos fios da nossa história se entrelaçam, virando a página de uma época e abrindo outra, que - infelizmente - sabemos qual é.
Pêsames
Quando finalmente acontece o que todos já sabiam que aconteceria - Getúlio estendido na cama, no quartinho quase monástico do último andar do Catete, o revólver na mão, "deixando a vida para entrar na história"- ali ficamos todos, perplexos, o peito oprimido, silenciosos. Difícil, nessa hora, sair da história para entrar na vida: pessoas choram, ninguém fala. Suzana Saldanha, a atriz gaúcha que faz o papel de Alzirinha, a filha-secretária-confidente-conselheira de Getúlio, conta que chegou já a receber pêsames de espectadores, ao final do espetáculo.
Nem Brizola, nem Marcello
No intervalo entre uma sessão e outra, o elenco permanece concentrado: Getúlio (Cláudio Marzo), no camarim, troca o pijama da cena final pelo terno com que presidirá a reunião ministerial; Beijo (Aderbal Freire-Filho/Benjamin Vargas, o irmão-problema que todo presidente parece destinado a ter) descansa entre as árvores do jardim do Catete, recuperando as energias para o incrível monólogo que deverá repetir dentro em pouco, no salão do piano, bêbado, irônico, assustado, desafiante.
Quem conversa conosco é Alzirinha, aliás Suzana Saldanha, forte, prestativa e discreta, na peça como fora dela.
Orgulhosa com o sucesso, Suzana fala da filosofia e das experiências do grupo, dos planos e também das dificuldades que uma proposta de trabalho como esta encontra. Deixa passar uma pontinha de mágoa: "até agora, nem o Brizola nem o Marcello vieram assistir a peça"... Mas conta, feliz, que o trabalho no grupo tem sido extremamente gratificante.
Operários do ofício
"O grupo se desenvolveu a partir de uma filosofia e de uma ética próprias", diz Suzana. "Somos todos atores, produtores e operários do nosso ofício de ator. Dentro do teatro, cuidamos de tudo, da limpeza à venda dos ingressos na bilheteria."
O Centro é um laboratório de teatro contemporâneo, atualmente sediado no Teatro Gláucio Gill, em Copacabana, cedido pelo governo estadual, cujo secretário de Cultura, professor Edmundo Muniz, tem procurado apoiar o trabalho do grupo. "A nossa luta é para continuar no Teatro, mas para isso o governo deveria ter uma política de cultura, e isso é coisa difícil. Os funcionários são cedidos pelo Estado, mas os atores não têm nenhum vínculo." Suzana e Aderbal são professores universitários, na Faculdade de Letras da UFRJ. Cada ator, além do trabalho na peça, cuida também da produção e da divulgação e faz seu serviço de "operário": faxina, bilheteria... Por tudo isso, como a temporada está boa, receberam este mês 350 mil cruzeiros!
Celebridades
Pergunto se as "celebridades" - Cláudio Marzo, Emiliano Queiroz, Rogério Fróes - atores convidados, também trabalham neste mesmo sistema. Suzana toma Cláudio Marzo como exemplo: "ele faz o Getúlio desde o início, com um envolvimento total: ele se sente Getúlio, ele vive Getúlio. É muito amigo do Aderbal. Ele tem uma ideologia de trabalho, uma ideologia política; só faz o que acredita. É um ator muito sensível. Sai do sítio dele, desce a serra todo o dia para fazer o espetáculo. Está ganhando abaixo do mercado, cerca de 1500 mil.”
Aderbal: a dimensão trágica da política
A cada momento, a conversa volta ao Aderbal. Em Getúlio Vargas, além de diretor e de ator, ele escreveu o texto, junto com Carlos Eduardo Novaes (foi de Novaes a ideia do local, o Palácio do Catete, reforçando a autenticidade), e foi parceiro de Nico Nicolaiewsky na composição das canções. No Centro, "a vontade como princípio da ação" é o seu lema: se você tem vontade (Suzana às vezes diz "desejo" em lugar de "vontade"), você faz!
Depois de uma carreira vitoriosa no teatro comercial, Aderbal luta agora por um ideal de política cultural. Afinal, ele sabe (porque é ele mesmo quem diz) que "o teatro apenas revela a dimensão trágica da política. Fora do Palácio, o Brasil ainda é a mesma peça."
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